Arquivo do blog

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Concepções e tipos de leitura

 Existem muitos conceitos e interpretações do que é considerado leitura. Martins (1994) em seu livro O que é leitura apresenta algumas concepções de leitura utilizadas e suas mais variadas formas, incluindo as condições para que ela possa
de fato acontecer.
A primeira concepção apresenta a leitura restrita à “decodificação mecânica de signos linguísticos.” (MARTINS, 1994, p.31). Já a segunda concepção de leitura, a apresenta “como um processo de compreensão abrangente, cuja dinâmica envolve componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, fisiológicos, neurológicos, bem como culturais, econômicos e políticos”. (MARTINS, 1994, p. 31). Assim entendida, a leitura se caracteriza pela construção de sentidos pelo leitor, o que envolve seu conhecimento de mundo, ou como dizia Paulo Freire (1981, p.8), “a leitura do mundo”. Esta, por sua vez é influenciada também pelo contexto socioeconômico e histórico do leitor. Em cada época e em cada posição social o mundo é lido de forma diferente, por isso a variedade de sentidos produzidos em cada leitura. É esta concepção de leitura que fundamenta esta produção didático-pedagógica.
Martins (1994) também esclarece que a leitura envolve três dimensões no leitor: a sensorial, a emocional e a racional. A leitura que é realizada no plano sensorial, é captada a partir dos sentidos elementares (visão, audição, olfato, tato e paladar). Por meio dela, o leitor lê o mundo que o cerca, em suas cores, formas, texturas, sons, odores e gostos. A leitura sensorial está em cada relação do sujeito com o mundo físico que o rodeia. Mesmo que os sujeitos envolvidos não se deem conta de que estão lendo, a leitura sensorial é a primeira forma de leitura que se faz ainda quando criança e que acompanha o sujeito ao longo da vida, contribuindo com o desenvolvimento da linguagem, enquanto “capacidade de comunicação com o mundo.” (MARTINS, 1994, p.43).
Já no campo das emoções, a leitura provoca sentimentos, envolvendo a subjetividade, sem controle racional do indivíduo.
Na leitura emocional emerge a empatia, tendência de sentir o que se sentiria caso estivéssemos na situação e circunstâncias experimentadas por outro [...]. caracteriza-se, pois, um processo de participação afetiva numa realidade alheia, fora de nós. (MARTINS,1994, p. 51-52).
Nesse tipo de leitura o mais relevante é o que o texto provoca no leitor, o texto é um acontecimento para o leitor. Sua importância ultrapassa o âmbito individual, pois atua nas relações com o outro, sendo orientada pelo universo social além do inconsciente individual. A leitura emocional “revela a predisposição do leitor de entregar-se ao universo apresentado no texto, desligando-se das circunstâncias concretas e imediatas.” (MARTINS, 1994, p.58).
Por caracterizar-se pela evasão da realidade vivida, a autora comenta que
esse tipo de leitura sofre críticas por tornar o leitor vulnerável às representações e visões de mundo presentes no texto lido. Porém, adverte que a aparente fuga da realidade pode ser encarada como uma espécie de fuga para a liberdade, o que instiga, com relação a esta leitura, uma reflexão mais aprofundada. Após o ato da leitura, o leitor pode refletir acerca do lido e estabelecer relações entre seu mundo e o texto.
Por fim, Martins (1994) apresenta a leitura racional como aquela que
[...] acrescenta à leitura sensorial e à emocional o fato de estabelecer uma ponte entre o leitor e o conhecimento, a reflexão, a reordenação do mundo objetivo, possibilitando-lhe, no ato de ler, dar sentido ao texto e questionar tanto a própria individualidade como o universo das relações. E ela não é importante por ser racional, mas por aquilo que o seu processo permite, alargando os horizontes de expectativas do leitor e ampliando as possibilidades de leitura do texto e da própria realidade social. (MARTINS, 1994, p.66).
A leitura literária engloba os três tipos de leituras analisados por Martins (1994). O texto literário envolve o leitor, produz nele os efeitos mais variados, passando por seus sentidos, suas emoções e seu raciocínio, muitas vezes misturando as três dimensões num mesmo ato de ler, ou passando de uma para outra dimensão no decorrer da leitura, dependendo do tipo de texto que se lhe apresenta.
Magnani (2001) também aborda sobre concepção de leitura, definindo leitura como algo que vai além da decodificação de sinais, pois engloba “a compreensão do signo linguístico enquanto fenômeno social. Significa o encontro de um leitor com um escrito que foi oficializado [...] como texto (e como literário) em determinada situação histórica e social.” (MAGNANI, 2001, p. 49).
Assim, a leitura não se refere ou se restringe apenas ao escrito, sempre ultrapassando o plano da palavra para criar sentidos na vida de quem lê. Por isso, a leitura envolve a compreensão dos signos linguísticos em seus aspectos sociais, na relação de um indivíduo com outro, nunca como um ato individual e isolado do contexto social e histórico.



FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez Editores, 1981.

MAGNANI, Maria do Rosário Mortatti. Leitura, Literatura e escola. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 19.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016



Texto de Marina Colasanti

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016


Ao ler, o aluno poderia relaxar...músculos...postura...raciocínio. Poderia abandonar a lógica e a linearidade impostas pela escola ao modo de pensar e conhecer. [...], poderia deixar de ouvir o mestre, que tudo pode e tudo sabe para ouvir a si mesmo e aí acreditar que também sabe e que também pode... errar... parar de ler... discordar... não gostar... misturar ... imaginar e sonhar. [...], sair do anonimato, da situação de massa a que fica submetido na escola, para recuperar o pessoal e nele o coletivo. Abandonar a condição de aluno [...] para existir como pessoa e como leitor. Sair do compromisso, da obrigação, da ‘atividade’, escapando assim ao controle, à avaliação e à autoridade. (SILVA, 1999, p. 23)